Maurício Leite é um brasileiro irrequieto e sem papas na língua. Arte-educador, com trabalho realizado nos mais diversos locais do mundo mas com especial incidência nos PALOP, começou a guardar parte da bagagem em Portugal, nos últimos anos. Foi em Cascais, junto à sua casa, que conversámos sobre o peso dos livros e muitas outras coisas.
FL - Quando se faz uma pesquisa sobre ti, aparecem inúmeras coisas, entre elas “artista plástico”. Como é que te defines?
ML - Sou educador! Sou arte-educador, sou formado em arte-educação e dentro da arte-educação escolhi trabalhar com o livro. Acho que é a arte mais chocante, que mais me toca, que é mais acessível e que é mais necessária. Eu sou de um país pobre e a maior pobreza que alguém pode ter é a pobreza intelectual e eu achei que a maior contribuição que eu podia dar como arte-educador era trabalhar com a literatura infanto-juvenil, com esse intuito de despertar o gosto pela leitura.
Artistas plásticos são os meus plagiadores, se procurares na Internet vais ver um monte de gente que tem o meu projecto mas que nunca me consultou. As pessoas vêem a ideia da Mala e fazem… vão fazendo. Eu, como bom guerreiro, não me incomodo, o que nós temos de mostrar é competência. O que eu posso dizer aos imitadores é “Que pena!”, se me tivessem procurado eu poderia ter ajudado, porque eu nunca cobrei nada para ensinar a fazer o que eu faço.
FL - Já estás em Portugal há algum tempo, o que achas do país ao nível da tua área de trabalho?
ML - Vou falar em geral, nos países de língua portuguesa, onde tenho trabalhado nos últimos anos através da CPLP. Estão todos em pé de igualdade, se bem que Portugal esteja um pouco melhor porque é mais rico e tem mais bibliotecas. Mas há coisas que me chocam muito: no outro dia fui a uma biblioteca e perguntei quantos livros infantis tinham. Tinham doze mil. E quantos leitores? “Há um menino que vem aqui e lê muito”. E o que é que ele lê mais? “O Tio Patinhas, porque nós não emprestamos”. (risos). Acho tudo muito equivocado, todos querem fazer mas têm uma receita mais rançosa, mais velha do que a outra.
Em relação a Portugal, especificamente, não está nem sequer a gatinhar, ainda. Incomoda-me o formato do livro, o preço do livro, o peso dos livros, todos são iguais, todos têm capa dura, todos são incómodos de transportar. Eu, que sou promotor de leitura, se levar cinquenta livros portugueses tenho de contratar um carregador, porque eu não consigo. Estou a falar de livros infantis… São muito presunçosos.
Há coisas boas, mas ainda são poucas, na parte da ilustração. Há muitos artistas plásticos famosos a ilustrar, mas o facto de ser um artista plástico não o faz um ilustrador. Um ilustrador tem que estar mais ligado ao design gráfico, à programação visual, a contar uma história através da imagem ao serviço da literatura.
Por isso eu ainda trabalho com poucos livros portugueses, para crianças. Trabalho muito mais com livros africanos. Eu tenho encontrado verdadeiras pérolas. Por exemplo em Moçambique o livro da Angelina Neves que se chama “A banana vaidosa” é um livro feito em casa, ilustrado em casa e que custa menos de um euro. Assim nós vemos que não é o tamanho do livro, se a capa grossa ou dura que vai definir se a literatura é boa.
FL - Tu costumas dizer, em relação às tuas actividades, que elas valem cada cêntimo. Quanto aos livros, achas que têm um preço excessivo face à qualidade?
ML - Isso não me compete muito mas eu tenho uma opinião: nós não precisamos de comprar um livro novo! Podemos comprar livros usados, podemos comprar livros a dois e podemos ir à biblioteca que eles emprestam.
Sobre o preço do livro eu não sei se é justo, mas acho sempre caro. O único lugar do mundo em que o livro é barato é Cuba, onde é vendido a cêntimos, com papel barato, com edição barata, o importante é a qualidade da literatura e não a sofisticação do livro. Obviamente que se pudermos ter um livro bonito, bem ilustrado, num papel sofisticado é bom, mas isso quando o livro pede, não significa que todos têm que ser assim.
Acho que os editores devem rever certos valores, actualizarem-se. Em França encontramos livros incríveis, cartonados, plastificados, leves, baratos, em Espanha comprei uma colecção em que cada livro custa quatro euros, desdobráveis, que vão durar toda a vida… Acho muito antiquada a postura dos livreiros portugueses.
FL - Mas porque é que achas que isso acontece em Portugal, onde estamos sempre tão interessados em importar modas?
ML - Isso é mais antigo que o mundo… O livro que não fica em pé não é bom! (risos)
FL - Achas que é só mesmo por causa disso?
ML - Por isso é que eu te disse que acho que os livreiros têm de rever certos valores, um é esse. Ou então é o autor que acha que a obra se torna menor se “não ficar de pé” na estante. Hoje entramos numa biblioteca e parece uma ameaça, porque os livros estão todos de pé, a olhar-te.
O que vai definir a qualidade de um bom livro é um bom texto, um texto adequado para a criança, adequado ao tempo actual mesmo que seja uma história antiga. Eu acho que, depois da Playstation, dos Dvd’s, o livro está na idade da pedra, no seu formato e conteúdo, salvo raríssimas excepções. Aquilo que eu digo é sobre aquilo que eu conheço e o que eu conheço é ainda muito pouco, pois estou cá há pouco tempo.
Quando eu fui para Moçambique comecei a ler literatura infanto-juvenil moçambicana e hoje posso falar um pouco sobre ela. Em Angola comecei a ler e encontrei coisas maravilhosas como Dário de Melo. Em Portugal eu estou em fase de namoro, portanto estou a falar do que vejo nas bibliotecas. Acho tudo muito comercial e muito desperdício de papel. Volto a dizer: eu carrego livros! Tenham piedade de nós, promotores de leitura… O ano passado tive uma tendinite de carregar a mala de livros. O médico proibiu-me, mandou-me pôr rodinhas, dividir o peso nas costas… Eu tenho calos nas mãos desde que iniciei esta profissão. Qualquer livro pesado fica fora da minha mala.
FL - Vamos então à Mala de Leitura, queres falar um pouco sobre ela?
ML - Toda gente, quando vê a Mala diz que quer ter uma, mas… A Mala de Leitura vai muito além do que as pessoas vêem. Tem por trás dela critérios muito rigorosos de selecção, tem critérios científicos de avaliação na questão de qualidade/quantidade de leitura e leitores, tem um cronograma, tem um planeamento.
Quando procuramos na Internet encontramos várias Malas, mas têm a Mala, não o espírito. O que eu acho que faço diferente no mundo da leitura é o seguinte: como é que uma quantidade pequena de livros pode atingir uma quantidade maior de pessoas num tempo menor e por um custo mais baixo e sendo itinerante?
Mas como tudo na vida eu tenho de ter um critério, que livros são esses, que comunidades são essas, que tipo de leitor se vai formar, o que pode interessá-los num primeiro momento, por onde começar. Aí começa o meu trabalho, o que acho mais difícil, que é a selecção.
FL - Organizaste uma exposição de brinquedos tradicionais, patente na Biblioteca de Tábua, com peças recolhidas na zona. Quando é que começaste a interessar-te por essa área?
ML - Chamaram-me para fazer um trabalho na Ilha do Bananal, em Mato Grosso. Mas não tinham dinheiro, nem livros. Por isso, comecei a trabalhar com as tradições locais, orações, rezas, lendas indígenas, a história das pessoas, como é que elas chegaram àquela região.
Um dia vi alguém a fazer um brinquedo, feito com buriti, que é uma palmeira muito importante para nós lá na Amazónia. Ela é chamada o “mimo da terra” porque tudo se aproveita, comemos, fazemos óleo, roupa, casas, muitos animais moram nela, outros alimentam-se dos coquinhos.
Um homem fez um aviãozinho, com uma hélice, que mexia e tudo. Eu perguntei e ele tinha aprendido com o avô dele e eu iniciei uma pesquisa sobre brinquedos que tinham história. Em Portugal encontrei muitos brinquedos de origem portuguesa, outros de origem africana misturados com tradição indígena. No Brasil, trabalho muito na zona do nordeste onde há muitas influências portuguesas e holandesas, que se notam nos brinquedos.
Depois começámos a fazer coisas para ganhar dinheiro, a fazer animais que passavam no fundo do quintal, como a sucuri. A sucuri é uma cobra que tem doze metros, a minha tia é especialista em matá-las porque elas estavam sempre a comer os animais, galinhas, porcos.
Se alguém tiver alguma sucuri por aí é só chamar a Tia Rosinha… (risos). Como na Amazónia convivemos muito com a natureza começámos a fazer o que estava em redor e hoje temos um museu de três mil e quinhentas peças, um museu itinerante. Vendemos uma parte de animais e insectos para o Museu de História Natural em Manhattan, eles têm o exclusivo para comprar dez modelos, um contrato de quinze anos, não podemos trabalhar para mais ninguém.
FL - Mas pagam primeiro e só depois é que vocês entregam, não é?
ML - Pagam em Janeiro e nós entregamos em Dezembro… (risos) Mas isto é mais “uma cauda de pavão”, porque é uma coisa muito simples, de uma região muito pobre e eu achei que merecia ser assim “sofisticado”. Quando alguém pergunta “Vocês vendem?” eu respondo “Vendemos”. “Onde?”. “Na loja do Museu de História Natural em Nova Iorque. No final fica bonito…
FL - No fundo esse pode ser um bom exemplo para o nosso país…
ML - Muitas das nossas virtudes no Brasil encontrei-as aqui em Portugal, mas também muitos dos nossos defeitos. Um deles é a fogueira das vaidades dos governantes e outro é não fazer o óbvio.
Tudo o que as pessoas souberem fazer hoje com as mãos vale muito mais porque se torna um produto sem igual no mercado, o que é genuíno.O brasileiro tem a mania de fazer qualquer coisa e achar que o estrangeiro é burro, qualquer coisa serve.
Mas hoje em dia, tudo o que tenha uma base natural, que seja retomar a tradição, trabalhar com uma fibra, com um tingimento natural é muito valorizado. No Brasil encontrei uma amiga que descobriu um algodão que estava quase extinto, que é o algodão-ganga, já nasce castanho, não é preciso tingir.
Ela conseguiu algumas sementes, plantou e ela tem um grande incentivo da Suiça e todos os tecidos de algodão-ganga são vendidos para uma fábrica lá, para fazer capas de sofás. É uma ideia muito simples mas que acaba por ser sofisticada. Ela recuperou uma coisa antiga e tem agora um centro de teares, onde as senhoras vão trabalhar, numa zona muito pobre, em Minas Gerais.
Portugal é muito apegado à sua alimentação, o pão de cada região, o vinho, os frutos, e isso é um potencial. Eu fui a Ponte de Lima e vi uns lencinhos bordados com histórias de amor, num português arcaico, muito bonito. O lenço mais pequeno, com uma pombinha, que dizia “A nossa amizade vai-se acabar no dia em que esta pombinha voar” custava trinta e nove euros. Haverá sempre quem compre porque só lá é que se faz e faz-se muito pouco.
FL - Em termos de promoção do livro e da leitura também achas que estamos a deixar de fazer as coisas simples e a ir para coisas demasiado complicadas?
ML - Não acho que sejam demasiado complicadas, acho é que não é o caminho. Quem quer fazer promoção da leitura não é por aí que deve “soprar”. Para além disso estão todos a “soprar” para sítios diferentes e por isso nunca vai haver “vento”.
A questão está na competência, de boas intenções está o inferno cheio. Qualquer adulto, qualquer professor, qualquer pessoa acha que pode fazer este trabalho.
Mas vamos ser claros, o que é que envolve saber fazer esse trabalho? È preciso sermos um voraz leitor de tudo o que se publica para crianças e jovens e também que conheçamos crianças e jovens!
O que interessa a cada faixa e o que é a literatura, temos que ter um feeling sobre o que é um bom livro. A minha mestra Francisca Nóbrega ensinou-me o que nenhuma faculdade me ensinou: dar o livro certo, para a pessoa certa, na hora certa e sair de perto. Para isso é preciso ter competência.
Quando tu vais ao médico para ser operado, ser ele não for competente ele mata-te ou deforma-te. Para um piloto de avião ou outra profissão qualquer é preciso ser competente, mas quando chegamos á promoção da leitura qualquer um acha que pode fazer.
Em quase todos os lugares, quando alguém abre a boca para falar de promoção da leitura diz a primeira heresia: “Tem que se criar hábito”. Eu acho que o mesmo tempo que se demora para criar um hábito demora para formar um leitor, a competência é que é diferente. Hábitos adquirimos e perdemos ao longo da vida, mas aquilo que é feito pelo prazer não se perde nunca.
A primeira coisa que acho errada é que todos os projectos vêm “atrelados” à escola. A escola não é um bom lugar, não é um lugar bom, não está bem. Ninguém gosta da ministra, ninguém está contente com o que ganha, ninguém está satisfeito. A escola é uma enxaqueca. Oitenta por cento dos que lá estão não são educadores, estão lá porque não arranjaram outra coisa para fazer, porque não tiveram coragem, porque não tiveram competência e como o Ensino não avalia qualquer coisa serve.
Porque não fazer os programas de leitura noutros locais? Porque não fazer na praça? E a Biblioteca? Porque é que não cumpre a sua função de levar o livro e a cultura? A Biblioteca espera que tu sejas leitor e vás lá. A maioria vai para estar na Internet, o resto vai para ler livros obrigatórios da escola, outros vão ler o jornal, enfim…
FL - Alguma mensagem que queiras deixar?
ML - Tudo vale a pena se a Mala não é pequena… (risos)
Livro
ML - O que eu mais gostei nos últimos tempos é uma nova versão, espanhola, do “Soldadinho de Chumbo” e é um livro de imagem.
Disco
ML - Quero sugerir um disco que é da Ala dos Namorados, que é o que mais gosto do pouco que conheço da música portuguesa. Quando eu estive em Maputo estive doente durante uns dias e não pude sair de casa. Na RTP só passava Ala dos Namorados a tocar “O Fado do Passarinho”, que eu amo.
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